Escreve-se, repete-se, cria-se, cita-se. Nas palavras de Nietzsche, funciona mais ou menos assim: “A vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez”. Dessa forma é o Poucas e Tantas, um pouco de tudo, muitas coisas repetidas, outras inéditas (ou não tão inéditas), algumas curiosidades...

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Quanto vale uma crônica? - por Artur Xexéu

Não teve carnaval em 1894. Não foi um jejum geral de folia. Há indícios, por exemplo, de que justamente em 1894 aconteceu o primeiro carnaval de Aracaju. Há sinais ainda de que a festa aconteceu normalmente em Salvador com os clubes Cruz Vermelha e Fantoches desfilando nas ruas e se esbaldando nos bailes dos teatros São João e Politeama. Mas não teve carnaval no Rio. Foi proibido por lei.

Não sei bem o que motivou a lei. Parece que as autoridades não queriam mais confusão do que a naturalmente provocada pela Revolta da Armada. A Revolta trouxe outras consequências, como a transferência da capital de Niterói para Petrópolis. Mas nenhuma foi tão drástica quanto a suspensão do carnaval. Machado de Assis, que aparentemente nem se preocupou tanto assim com a Revolta da Armada, previu uma tragédia apocalíptica com a proibição da folia, como escreveu em crônica publicada no dia 4 de fevereiro daquele ano fatídico:


“Quando eu li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei mortalmente triste. É crença minha que, no dia em que deus Momo for de todo exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de l’homme(1), é ainda uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inextinguível (...)”


Apesar dos temores de Machado, o carnaval não rolou, e o mundo não se acabou. Talvez pelo fato de o exílio de Momo não ter sido tão definitivo assim, como comprovam as ocorrências da festa em Aracaju e Salvador. Nem por isso, o espanto de Machado foi menor. Afinal, já naquele tempo, as leis por aqui não pegavam. E não é que justo aquela, a que proibia a alegria carnavalesca em 1894, tinha que pegar? É o que ele nos conta em outra crônica daquele ano, esta de 11 de fevereiro:


“Nunca houve lei mais fielmente cumprida do que a ordem que proibiu, este ano, as folias do carnaval. Nem sombra de máscara na rua. Fora da cidade, diante de uma casa, vi quarta-feira de cinza algum ‘confetti’ no chão. Crianças naturalmente que brincaram da janela para a rua, a menos que não fosse da rua para a janela. Os chapéus altos, que desde tempos imemoriais não ousavam atravessar aquela região no mundo que fica entre a Rua dos Ourives e a Rua Gonçalves Dias, e que é propriamente a Rua do Ouvidor, iam este ano abaixo e acima sem a menor surriada. Quem nos deu tal rigorismo na observância de um preceito?”


Duas questões me despertam a curiosidade neste texto de Machado de Assis. A primeira é que raio de Rua dos Ourives é essa? Bem, a Rua dos Ourives é de um tempo anterior à abertura da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Para rasgar a avenida, a esquecida Ourives foi dividida em duas: a primeira seria o trecho da Rua Miguel Couto que vai do Largo de Santa Rita até a Rio Branco, passando pela Avenida Presidente Vargas; a outra, o trecho da Rua Rodrigo Silva que vai da Rua Sete de Setembro até a Rua São José. Deu para enteder? Imagino que não. E não é minha intenção transformar a cabeça do pobre leitor num mapa imaginário do Centro da cidade. Passemos então à segunda questão despertada pelo pedaço de crônica machadiana: que revolta faria um prefeito de hoje proibir o carnaval? É difícil imaginar neste começo de século XXI uma disputa tão feroz entre Exército e Marinha que fizesse as autoridades municipais considerarem o carnaval um perigo. Guerra no Rio? Só se for entre a Rocinha e o Vidigal. Mas $ém imagina bandidos de favela brigando justamente no carnaval?


E se... é só uma hipótese... e se o carnaval fosse proibido? Como teríamos notícias de Viviane Araújo? E de Luma de Oliveira? E Jayder Soares? O que faz Jayder Soares quando não é carnaval e não tem camarote da Grande Rio para organizar? Nem é preciso dizer que, no tempo de Machado, o carnaval não era assim.


Porque em 1895, vencidos os perigos da Revolta da Armada, o carnaval voltou a ser permitido no Rio, e lá estava Machado, com mais uma crônica, agora de 3 de março de 1895, para descrevê-lo:


“Tantas são as matérias em que andamos discordes, que é grande prazer achar uma em que tenhamos a mesma opinião. Essa matéria é o carnaval. Não há dois pareceres; todos confessam que este ano foi brilhante, e a mais de um espírito azedo e difícil de contentar ouvi que a Rua do Ouvidor esteve esplêndida.


“Ouvi mais. Ouvi que houve ali janela que se alugou por duzentos mil réis, e terá havido ou$muitas. É ainda uma causa da harmonia social, porquanto, se há dinheiro que sobre, há naturalmente conciliação pública.


Nas casas de pouco pão é que o adágio acha muito berro e muita sem razão. Uma janela e três ou quatro horas por duzentos mil réis é alguma coisa, mas a alegria vale o preço. A alegria é a alma da vida. Os máscaras divertem-se à farta, e aqueles que os vão ver passar não se divertem menos, não contando a troca de ‘confetti’ e de serpentinas, que também se faz entre desmascarados. Uns e outros esquecem por alguns dias as horas aborrecidas do ano.”


Vem cá, no carnaval de 1895, alugavam-se janelas na Ouvidor para ver os mascarados passar? Não sei não, mas isso parece a semente do camarote da Grande Rio. Até que o carnaval de Machado não era tão diferente assim do dos dias de hoje.


A esta altura da crônica, você deve estar se perguntando o porquê de tantas citações a Machado de Assis. É que o escritor foi meu maior companheiro na última semana, desde que comprei num sebo, por R$ 4, um livro com suas crônicas publicadas no jornal “Gazeta de Notícias”. Foi a melhor relação custo-benefício de qualquer compra que eu tenha feito este ano. São 90 crônicas recheadas da mais fina ironia sobre acontecimentos do cotidiano carioca no fim do século XIX. E, convenhamos, R$ 4 é barato demais. Mas não seria excessivamente barato? É um livro encadernado, em bom estado, uma edição dos anos 40, conteúdo de primeira... Por que custou tão pouco?


Alguém poderia responder que crônicas não resistem ao tempo. Que o que valia para 1894 ou 1895 não serve para 2011. Será? As janelas alugadas da Rua do Ouvidor provam que não. Pode ser que o fato de o livro ser um volume desgarrado o tenha desvalorizado. Na verdade, meu livro de R$ 4 é o segundo volume de uma série de três que junta todas as crônicas escritas por Machado para aquele jornal. Mesmo assim, só R$ 4? Feitas as contas, cada crônica de Machado de Assis está valendo algo entre R$ 0,044 e R$ 0,045. Uma crônica do maior escritor deste país não chega a valer cinco centavos.


É desanimador. Se o mercado oferece uma crônica de Machado por menos de cinco centavos, quanto estará valendo uma crônica do humilde ocupante deste espaço às quartas-feiras? Não ouso arriscar.


http://oglobo.globo.com/cultura/xexeo/posts/2011/02/02/quanto-vale-uma-cronica-360522.asp

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No momento, sou uma citação do Mario Quintana: "A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo. Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali... Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!"

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