Escreve-se, repete-se, cria-se, cita-se. Nas palavras de Nietzsche, funciona mais ou menos assim: “A vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez”. Dessa forma é o Poucas e Tantas, um pouco de tudo, muitas coisas repetidas, outras inéditas (ou não tão inéditas), algumas curiosidades...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

CARTAS A THÉO (trecho)


"Escrevo-lhe um pouco ao acaso o que me vem à pena, ficaria muito contente se de alguma maneira você pudesse ver em mim mais que um vagabundo.
Acaso haverá vagabundos e vagabundos que sejam diferentes? Há quem seja vagabundo por preguiça e fraqueza de caráter, pela indignidade de sua própria natureza: você pode, se achar justo, me tomar por um destes.
Além deste, há um outro vagabundo, o vagabundo que é bom apesar de si, que intimamente é atormentado por um grande desejo de ação, que nada faz porque está impossibilitado de fazê-lo, porque está como que preso por alguma coisa, porque não tem o que lhe é necessário para ser produtivo, porque a fatalidade das circunstâncias o reduz a este ponto, um vagabundo assim nem sempre sabe por si próprio o que poderia fazer, mas por instinto, sente: “No entanto, eu sirvo para algo, sinto em mim uma razão de ser, sei que poderia ser um homem completamente diferente. No que é que eu poderia ser útil, para o que poderia eu servir; existe algo dentro de mim, o que será então?”.
Este é um vagabundo completamente diferente; você pode, se achar justo, tomar-me por um destes.
Um pássaro na gaiola durante a primavera sabe muito bem que existe algo em que ele pode ser bom, sente muito bem que há algo a fazer, mas não pode fazê-lo. O que será? Ele não se lembra muito bem. Tem então vagas lembranças e diz para si mesmo: “Os outros fazem seus ninhos, têm seus filhotes e criam a ninhada”, e então bate com a cabeça nas grades da gaiola. E a gaiola continua ali, e o pássaro fica louco de dor.
“Vejam que vagabundo”, diz um outro pássaro que passa, “esse aí é um tipo de aposentado”. No entanto, o prisioneiro vive, e não morre, nada exteriormente revela o que se passa em seu íntimo, ele está bem, está mais ou menos feliz sob os raios de sol. Mas vem a época da migração. Acesso de melancolia – “mas” dizem as crianças que o criam na gaiola, “afinal ele tem tudo o que precisa”. E ele olha lá fora o céu cheio, carregado de tempestade, e sente em si a revolta contra a fatalidade. “Estou preso, estou preso e não me falta nada, imbecis! Tenho tudo que preciso. Ah! Por bondade, liberdade! ser um pássaro como os outros.”
Aquele homem vagabundo assemelha-se a este pássaro vagabundo…
E os homens ficam freqüentemente impossibilitados de fazer algo, prisioneiros de não sei que prisão horrível, horrível, muito horrível.
Há também, eu sei, a libertação, a libertação tardia. Uma reputação arruinada com ou sem razão, a penúria, a fatalidade das circunstâncias, o infortúnio, fazem prisioneiros.
Nem sempre sabemos dizer o que é que nos encerra, o que é que nos cerca, o que é que parece nos enterrar, mas no entanto sentimos não sei que barras, que grades, que muros.
Será tudo isto imaginação, fantasia? Não creio; e então nos perguntamos: meu Deus, será por muito tempo, será para sempre, será para a eternidade?
Você sabe o que faz desaparecer a prisão. É toda afeição profunda, séria. Ser amigos, ser irmãos, amar isto abre a porta da prisão por poder soberano, como um encanto muito poderoso. Mas aquele que não tem isto permanece na morte.
Mas onde renasce a simpatia, renasce a vida."

CARTAS A THÉO, Van Gogh – Tradução de Pierre Ruprecht – L&PM

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No momento, sou uma citação do Mario Quintana: "A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa, como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo. Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali... Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando!"

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